2020 � ano de elei��es presidenciais nos Estados Unidos. O mundo inteiro assiste a corrida eleitoral porque o resultado pode impactar a todos em virtude da import�ncia do pa�s em n�vel global. Contudo, brasileiros costumam ter dificuldade em acompanhar o processo das elei��es americanas pelo fato das regras eleitorais serem muito diferentes e pela complexidade do jogo de estrat�gias. Afinal, elas n�o dependem apenas do voto popular, com as elei��es presidenciais americanas nem sequer sendo diretas. Portanto, n�o � poss�vel analisar a disputa entre Donald Trump e Joe Biden sem antes entender as regras do jogo a que eles est�o submetidos, e este � o prop�sito deste texto.
De in�cio, deve-se lembrar que, cada estado dos Estados Unidos possui suas leis e sua pr�pria constitui��o (tal como os entes federativos no Brasil, mas l� a compet�ncia para eles legislarem � muito maior). Dessa forma, cada parte do processo eleitoral pode ter peculiaridades em fun��o dessas diferen�as em leis e processos definidos diferentemente em cada estado.
Trataremos aqui apenas das elei��es presidenciais, mas vale dizer que elas n�o s�o as �nicas que ocorrem no ano, embora sejam as mais importantes para o resto do mundo.
Uma premissa do jogo � que nos Estados Unidos, o voto n�o � obrigat�rio. No ano de 2016, apenas 136 milh�es de pessoas foram �s urnas, representando apenas 58,1% da popula��o que tinha direito a voto. Assim, na maioria dos estados a primeira batalha de cada elei��o � motivar que sua pr�pria base eleitoral se registre para votar.
Para isso, atualmente 21 estados mais o distrito federal abriram a possibilidade de fazer esse registro no dia das elei��es. Esses locais t�m uma propor��o consideravelmente maior de pessoas que votam que o resto do pa�s.
O processo de pr�vias eleitorais nas elei��es americanas
As pr�vias existem porque apenas uma pessoa de cada partido pode se candidatar para a corrida presidencial. Nelas, os eleitores participam no processo de escolha do candidato, que � anunciado na Conven��o Nacional de cada partido posteriormente. Elas s�o raras no Brasil, mas h� exce��es � como as pr�vias do PSDB ao governo de S�o Paulo em 2018, vencidas por Jo�o D�ria.
Quando se fala das pr�vias das elei��es presidenciais americanas, geralmente s�o mencionadas somente as prim�rias. Contudo, em quatro dos 50 estados e em tr�s territ�rios n�o incorporados � Samoa Americana, Guam e Ilhas Virgens dos Estados Unidos�, o candidato preferido � escolhido por meio de um caucus [mais explica��es de como funciona esse sistema logo abaixo].
O que s�o as prim�rias
Nas prim�rias, o governo do ente federativo faz uma vota��o com os nomes dos pr�-candidatos de cada partido. Al�m disso, h� diversos tipos diferentes de prim�rias: abertas, fechadas, semiabertas, semifechadas, �blanket�, entre outras.
Em prim�rias fechadas, os eleitores podem votar apenas no partido em que se registraram afiliados. Um motivo por tr�s da escolha desse tipo de prim�ria � evitar a possibilidade de raiding. Esse termo se refere a quando pessoas alinhadas com um partido votam em candidatos secund�rios nas prim�rias do partido oposto ao inv�s de votar no candidato do pr�prio partido. Como esses candidatos tem menos popularidade e menos chance de angariar votos nas elei��es gerais, isso em tese fortaleceria o candidato do partido original dos raiders.
J� em prim�rias abertas, os eleitores podem votar em qualquer candidato, mesmo que n�o sejam filiados ao partido. Em teoria, esse tipo de prim�ria tende a beneficiar candidatos mais moderados.
Como o funcionamento de cada prim�ria � objeto de legisla��o de cada estado, h� ainda sistemas que s�o h�bridos, ou com suas especificidades. Em prim�rias semifechadas, por exemplo, pessoas que n�o se afiliaram a nenhum partido podem escolher um partido para votar no dia da elei��o. Isso reduz a possibilidade de raiding, ao mesmo tempo que permite que mais pessoas votem.
O que s�o os caucus
Organizados pelos partidos, e n�o pelo governo estadual, os caucus s�o eventos privados e fechados em que apoiadores registrados de cada partido se re�nem para escolher um candidato preferido. Ao inv�s de vota��es an�nimas das prim�rias, as pessoas que apoiam cada candidato se agrupam em filas ou em regi�es do local do caucus para serem contadas.
Isso abre espa�o para as pessoas avaliarem o apoio de outras pessoas e, por consequ�ncia, mudar seu apoio em tempo real.
Red states, blue states e o swing states nas elei��es americanas
Historicamente, boa parte dos estados � tradicionalmente democrata ou republicana, chamados respectivamente de blue states e red states. S�o locais em que o apoio a um partido � t�o consistente que o partido oposto mal faz campanha no estado, preferindo focar os recursos, tempo e dinheiro em locais com maiores chances de ganhar novos votos. Embora haja outros partidos na corrida, as elei��es presidenciais atualmente s�o polarizadas apenas nos dois partidos principais.
Isso significa que as corridas eleitorais recentes come�aram com o candidato democrata em vantagem no n�mero de votos do col�gio eleitoral [mais explica��es acerca do sistema logo abaixo].
J� os estados em que n�o h� uma predomin�ncia de apoio a um determinado partido s�o chamados de swing states, ou purple states. S�o os estados onde se � mais eficiente investir em campanha eleitoral.
J� em azul escuro e azul claro, onde democratas ganharam 4 e 3 vezes, respectivamente.
Em roxo, estados onde cada partido levou 2 elei��es.
Fonte: Wikipedia.
A import�ncia de Iowa e de New Hampshire
Em cada elei��o, � dado um enfoque para o caucus do Iowa e as prim�rias de New Hampshire. Embora esses estados sejam pequenos e representem poucos delegados, eles s�o tratados como os mais importantes por serem os primeiros.
As vota��es das pr�vias n�o ocorrem no mesmo dia, sendo espalhadas durante o ano at� a data das Conven��es. Logo, esses estados servem de term�metro para os pr�-candidatos, que percebendo um baixo apoio do eleitorado, largam a corrida e apoiam outro candidato.
Nas elei��es de 2016, por exemplo, inicialmente havia 12 pr�-candidatos para o partido republicano. Ap�s o caucus de Iowa e as prim�rias de New Hampshire, metade deles desistiu.
Em 2020, para o partido democrata, por diversos erros t�cnicos e por um atraso na divulga��o dos resultados no caucus de Iowa, os primeiros pr�-candidatos acabaram por esperar mais tempo para decidir sua perman�ncia na candidatura.
At� o dia 29 de fevereiro, ap�s apenas quatro estados terminarem suas pr�vias, quatro dos 11 candidatos democratas j� tinham desistido da candidatura.
Por esse motivo, essas vota��es nos primeiros estados acabam por ter um peso individual muito maior nas nomina��es do que as dos estados seguintes.
Super Tuesday
Dentro das pr�vias de cada estado, h� a �super ter�a�, que � um dia geralmente entre fevereiro e mar�o em que diversos estados fazem suas pr�vias, e cerca de um ter�o do total de delegados de cada partido est� em jogo.
Como ele ocorre em diversos estados simultaneamente, � uma medida mais precisa do apoio aos nomes em jogo, e tamb�m acaba por ser um filtro nas pr�-candidaturas. Em 2020, dois dias ap�s a super ter�a, restaram apenas tr�s nomes democratas dos 11 originais: Bernie Sanders, Joe Biden e Tulsi Gabbard.
Delegados das prim�rias
De acordo com o resultado das prim�rias, cada partido aloca um n�mero de delegados para cada candidato. Os delegados representam uma parte da popula��o de um local e eles s�o escolhidos em n�vel local ou estadual.
Esses indiv�duos podem ser lideran�as locais do partido, pessoas engajadas no meio pol�tico, ou apenas cidad�os comuns. Para obter a candidatura do partido, um pr�-candidato deve alcan�ar maioria simples de votos de delegados.
O partido democrata faz essa aloca��o de forma proporcional: se um candidato tem 30% dos votos, ele recebe 30% dos delegados. Os delegados fazem uma promessa de votar de acordo com as opini�es de quem ele representa. Contudo, eles n�o s�o obrigados a votar no candidato que eles representam.
Al�m disso, o partido democrata tamb�m designa um n�mero de superdelegados � figuras importantes do partido, como membros do Congresso, ex-presidentes e o alto escal�o do partido � que podem votar em quem quiserem. Os superdelegados n�o existem para representar a vontade do eleitorado democrata, mas sim do establishment do partido, e por isso seus votos n�o s�o presos aos resultados das pr�vias.
J� no partido republicano, por outro lado, a maioria dos delegados faz um juramento que os obriga a votar no candidato em que eles foram alocados. Por�m, uma minoria dos delegados n�o faz esse juramento, e pode votar como quiser. Esses delegados, contudo, existem em fun��o de diferen�as nas regras das delega��es republicanas de cada estado, e n�o para representar uma classe importante do partido.
Mas em termos de aloca��o de delegados republicanos, alguns estados fazem aloca��o proporcional e outros s�o �winner-take-all�: ou seja, o candidato que tiver a maioria dos delegados, leva todos os votos do estado.
A Conven��o Nacional nas elei��es americanas
O fim das pr�vias e o in�cio oficial da corrida presidencial ocorre na Conven��o Nacional de cada partido, que � quando os votos dos delegados s�o contados e os candidatos � presid�ncia e vice-presid�ncia de cada partido s�o finalmente anunciados.
As Conven��es costumam acontecer nos meses de ver�o (entre junho e agosto). Em virtude da pandemia, na corrida presidencial de 2020 a Conven��o Nacional Democrata que ocorreria em julho, foi adiada para os dias 17-20 de agosto. J� a Conven��o Nacional Republicana ocorrer� nos dias 24-27 de agosto.
Como as listas de delegados e os resultados das prim�rias j� s�o conhecidos antes de cada conven��o, geralmente se tem no��o previamente de qual pr�-candidato vai sair vencedor. A import�ncia desses eventos reside em grande parte em unificar o partido em fun��o do candidato e do programa partid�rio. Por esse motivo, s�o cerim�nias relativamente festivas e animadas.
Elei��es Gerais
J� no in�cio de novembro, na primeira ter�a-feira depois do dia 1�, ocorrem as elei��es gerais. Na pr�tica, para alguns elas come�am antes disso. Isso porque quem n�o pode se deslocar at� os locais de vota��o no dia pode solicitar vota��o antecipada ou por correio.
Embora participem das pr�vias, os territ�rios dos Estados Unidos, n�o participam das elei��es.
Os eleitores votam na chapa que querem ver na presid�ncia, mas as elei��es presidenciais americanas s�o indiretas. Assim, esses votos na verdade s�o usados para definir os membros do Col�gio Eleitoral.
Como funciona o Col�gio Eleitoral nas elei��es americanas
O corpo do colegiado, que deve ser composto por 538 pessoas, � quem de fato elege o presidente. O n�mero � definido a partir do n�mero total de senadores (100) somado ao n�mero de deputados (438).
Esse n�mero de membros � distribu�do entre os 50 estados do pa�s mais o distrito federal. Novamente, os territ�rios ficam de fora.
Nessa divis�o, de in�cio cada estado recebe tr�s vagas, e as restantes s�o divididas proporcionalmente ao n�mero de habitantes de cada estado. Logo, o n�mero m�nimo de delegados (nesse caso, delegados do col�gio eleitoral, n�o confundir com os delegados das pr�vias partid�rias) de cada estado, � tr�s.
Mas quem s�o os delegados e quem os escolhe? Cada estado tem sua forma de escolha, que pode ser feita por um comit� partid�rio, por vota��o na conven��o partid�ria do estado, ou feita pelo candidato, ou feita at� pelo governador, no caso da Fl�rida. Assim, se faz uma lista com poss�veis delegados para cada partido.
Por exemplo: na Louisiana, que tem oito vagas pro col�gio eleitoral, cada diret�rio estadual de cada partido faz um comit�, que monta uma lista com oito pessoas que colocar� caso obtenha as vagas. Essas foram as listas da Louisiana em 2016.
Winner-take-all
Outro fato importante sobre as elei��es por colegiado, � o sistema �winner-take-all�, ou �o vencedor leva tudo�.
Para 48 dos 50 estados (e o distrito federal), o partido que tiver a maioria dos votos populares para seu candidato, leva todas as vagas para o Col�gio Eleitoral. Assim o candidato que conseguiu 51% dos votos populares no Fl�rida, n�o ganha apenas 15 dos 29 assentos no Col�gio, mas sim todos os 29.
As exce��es s�o os estados do Maine e Nebraska, que fazem um sistema em que 2 votos v�o para o candidato que ganhou as elei��es no estado, e os outros v�o para cada distrito congressional. Isto �, � um sistema mais proporcional do que o winner-take-all.
Esse modelo tamb�m explica porque � mais eficiente investir em campanha nos swing states, pois obtendo uma maioria simples no voto popular garante todos os assentos do estado no Col�gio.
A corrida pelos 270
Em dezembro ent�o, os membros do Col�gio Eleitoral votam. O candidato que ganha a elei��o � o que alcan�a o n�mero m�gico de 270 votos dos 538 poss�veis, ou seja, maioria simples.
Os delegados do Col�gio prometem votar de acordo com o candidato do partido e � esperado que o fa�am, embora n�o sejam obrigados a faz�-lo. Raramente, alguns deles votam em outros candidatos ou se abst�m. Esses delegados acabam sendo chamados de �eleitores infi�is� (faithless electors).
As elei��es americanas de 2016 tiveram 10 desses votos, um n�mero bem alto. � comum que em algumas elei��es tenham um voto infiel, mas a �nica vez que o n�mero de votos infi�is superou os 10 da elei��o de 2016 foi em 1872, em virtude da morte do candidato original.
Nesta segunda-feira (6), a Suprema Corte julgou por unanimidade que os estados podem punir os membros do Col�gio Eleitoral que quebrarem a promessa de votar no vencedor popular de um estado nas elei��es presidenciais. Atualmente, 32 estados t�m leis destinadas a desencorajar a trai��o de votos, embora ningu�m nunca tenha sido punido at� ent�o.
Cr�ticas ao modelo e distor��es
Em virtude do sistema de col�gio eleitoral, teoricamente um candidato pode se tornar presidente dos Estados Unidos se vencer em apenas em 11 estados, mesmo que n�o receba nenhum voto em todos os outros 39 estados. O dado refor�a que buscar o voto popular per n�o � uma boa estrat�gia nas elei��es americanas, mas sim trabalhar com base em uma f�rmula matem�tica.
Em cinco oportunidades o presidente dos Estados Unidos n�o venceu no voto popular, sendo tr�s delas ainda no s�culo XIX.
Nas elei��es de 2000, George Bush obteve 271 votos no col�gio eleitoral, enquanto Al Gore recebeu 266 votos. Nos votos em absoluto, por�m, o candidato democrata recebeu pouco mais de meio milh�o de votos a mais do que Bush. J� em 2016, Trump recebeu 304 votos no col�gio eleitoral, enquanto Hillary Clinton ficou com apenas 227. Mas nos votos em absoluto, o candidato republicano recebeu 2,8 milh�es de votos a menos que a oponente.
Levantamento da Pew Research Center�s de 2020 apontou que 58% dos americanos preferem mudar o sistema eleitoral, acabando com o col�gio eleitoral e instituindo o voto popular. Mas esta n�o � uma tend�ncia de agora, e sim um debate que ocorre h� d�cadas nos Estados Unidos.


Em 1969 a C�mara dos Deputados aprovou uma emenda para tornar a elei��o americana por voto popular, mas a iniciativa n�o passou no Senado.
Por que as elei��es americanas n�o s�o decididas por voto popular
As explica��es do formato das elei��es americanas s�o hist�ricas. Os Founding Fathers � os l�deres pol�ticos que participaram da independ�ncia ou da Constitui��o dos Estados Unidos � eram c�ticos em rela��o ao voto t�o somente popular. Isso porque as elei��es seriam muito restritas aos grandes centros urbanos, com entes federativos menos populosos sendo completamente ignorados ao longo do pleito. Por exemplo: em uma vota��o popular, n�o faria sentido um candidato presidencial deixar de fazer campanha na Calif�rnia para ir ao Alaska, j� que h� bairros neste estado com popula��es maiores do que todo o estado situado ao noroeste do Canad�.
Dessa forma, o sistema de vota��o que privilegia os estados busca fazer com que o candidato olhe para todo o pa�s, mesmo em locais que n�o sejam os mais populosos pois eles podem ser chave para angariar votos para o Col�gio Eleitoral.
Apesar do descontentamento de parcela consider�vel dos norte-americanos com o sistema de col�gio eleitoral, a raz�o inicial de buscar garantir aten��o especial a estados menores tem se mantido.
Considera��es finais
Entender melhor o processo eleitoral dos Estados Unidos � fundamental para se analisar a corrida presidencial de 2020. Para mais do que isso, � um estudo de caso que nos mostra como as estrat�gias eleitorais desse sistema se assemelham a um jogo de tabuleiro. Por exemplo, como votar � facultativo, um candidato com menos aprova��o geral pode eleger-se ao conseguir mobilizar uma presen�a maior entre seus apoiadores nas urnas de estados estrat�gicos e reduzir a quantidade de opositores que comparecer�o �s urnas.
O caso traz ainda insights poss�veis com base nas distor��es presentes em qualquer processo eleitoral. Nesse sentido, em 1896 o economista sueco Knut Wicksell escreveu um artigo-chave acerca da distribui��o justa dos impostos. Ele concluiu que uma maioria no poder poderia, se quisesse, transferir injustamente o peso da tributa��o � minoria e que apenas um acordo un�nime poderia evitar a explora��o da maioria. Estudos da Escolha P�blica tem caminhado nessa dire��o, analisando essa perspectiva sob os sistemas eleitorais, seus paradoxos e suas distor��es.
Afinal, os resultados eleitorais, em �ltima an�lise, dependem das regras estipuladas. Cada sistema eleitoral tem suas peculiaridades, n�o apenas em como ele opera, mas como ele afeta o modo de eleitores e dos candidatos se comportarem. A conclus�o � que a decis�o final que emerge dele pode ser um reflexo muito distorcido do que todos realmente querem.