Quando se pensa na forma��o de uma ditadura como a da Venezuela, usualmente imaginam-se casos em que a tomada do poder � realizada � for�a por militares. Durante a Guerra Fria, a maior parte dos colapsos institucionais se dava por golpes de Estado. Entre os exemplos latino-americanos, consta o Brasil, a Argentina, a Guatemala, o Peru, a Rep�blica Dominicana e o Uruguai.
Entretanto,�o processo de corrup��o das institui��es�� respons�vel por criar instabilidades institucionais e recessos democr�ticos ��� pass�vel de ocorrer por interm�dio de l�deres eleitos democraticamente e que subvertem o pr�prio processo que os conduziram ao poder.
Aziz Huq e Tom Ginsburg denominam esse processo de �regress�o constitucional�. Pode-se dizer que este � o caso venezuelano.
Como era a Venezuela antes da ditadura
A Venezuela era a democracia mais duradoura da Am�rica do Sul, vigorando desde 1958. Isso come�ou a mudar quando a economia do pa�s, altamente dependente do petr�leo, afundou-se em uma recess�o ao longo de uma d�cada devido � crise do combust�vel e a popula��o viu sua taxa de pobreza quase dobrar.
A instabilidade econ�mica gerou instabilidade pol�tica�e, em 1992, um grupo de militares de baixa patente liderados por Hugo Ch�vez se rebelou contra o presidente Carlos Andr�s P�rez. O golpe fracassou, mas a figura do militar passou a ser admirada por muitos venezuelanos.
Prova disso foi o ex-presidente Rafael Caldera lhe prestar solidariedade p�blica a fim de capitalizar-se politicamente � em vez de denunciar os l�deres de um movimento extremista e golpista. Eleito presidente pela segunda vez, cumpriu a promessa de campanha de anistiar Ch�vez, que seria julgado por trai��o. Acreditava-se que a popularidade do militar seria uma moda passageira. N�o era.
O ent�o outsider pol�tico se notabilizou ainda mais politicamente ao continuar a atacar o establishment venezuelano, composto, segundo ele, por �uma elite governante corrupta e com base em uma democracia falha�. Prometia acabar com injusti�as sociais a partir da distribui��o das riquezas oriundas do petr�leo. Ch�vez ascendeu ao poder em 1998 com 56% dos votos, representando enorme esperan�a popular e prometendo uma revolu��o.
Aproveitando-se da popularidade de in�cio de mandato, convocou em 1999 uma Assembleia Constituinte para criar uma nova constitui��o para o pa�s. Todavia, seus aliados pol�ticos ocupando 92% dos 131 assentos. Assim, o chavismo escreveu a Carta Magna a seu bel-prazer, que foi aprovada pela maioria (71%) dos apenas 44% de eleitores venezuelanos que compareceram �s urnas.
Por fim, novas elei��es foram convocadas em 2000, sendo novamente vencidas pelo militar � desta vez com 59% dos votos.
A guinada autorit�ria do chavismo
A oposi��o, no entanto, intensificou suas cr�ticas ao chavismo e criou-se um clima de radicaliza��o no pa�s, resultando em uma tentativa de golpe militar em 2002 que o tirou temporariamente do poder.
De volta ao Pal�cio de Miraflores, o chamado �comandante supremo� deu uma guinada autorit�ria. A partir da�,�os gastos p�blicos ficaram cada vez mais descontrolados, sendo ferramenta de pol�ticas populistas para a eterniza��o no poder do regime.
Utilizando-se da alta popularidade, conseguiu postergar um referendo liderado pela oposi��o e que tinha a possibilidade de tir�-lo de seu cargo. Esse adiamento foi decisivo, j� que em 2004 houve uma forte alta nos pre�os do petr�leo.
O boom econ�mico auxiliou na sustenta��o de sua posi��o, mantida gra�as a 59% dos votos em seu favor no denominado �Referendo revogat�rio contra Ch�vez�. Na oportunidade, 7 em cada 10 eleitores venezuelanos participaram do pleito.
Com clima revanchista,�o governo tornou p�blicas as assinaturas para a realiza��o do referendo e criou uma lista negra.�Assim, foram incentivados ataques a rivais pol�ticos, al�m da demiss�o de funcion�rios p�blicos e da exclus�o de empres�rios opositores de licita��es governamentais.
A pol�tica econ�mica da ditadura na Venezuela
Em 2003, sob o pretexto de combater a escalada inflacion�ria,�Ch�vez instituiu uma pol�tica de controle cambial�por interm�dio de uma estatal, controlando a venda de d�lares.�Tornou-se poss�vel importar algo de forma legal t�o somente a partir da autoriza��o governamental para a compra da divisa americana.
E, para piorar, como o foco das exporta��es era a produ��o petrol�fera, o governo n�o se preocupou com o desenvolvimento agr�cola e industrial do pa�s, fazendo com que a maior parte dos alimentos consumidos pela popula��o venezuelana tivessem de ser importados. A nacionaliza��o de ind�strias, como as de cimento e a�o tamb�m contribu�ram para que o setor privado fosse levado a substituir a produ��o pr�pria por importa��es mais baratas e subsidiadas pelo governo. Efeito semelhante � expropria��o de centenas de empresas e propriedades rurais.
A consequente hiperinfla��o, a depend�ncia das importa��es e diversas outras barreiras de entrada impostas ao mercado local levaram � escassez de insumos. Em �ltima an�lise, a a��o de Ch�vez�agravou a quest�o do desabastecimento no pa�s.
Al�m disso, o autocrata alterou a composi��o da Suprema Corte e expandiu o Tribunal Supremo de Justi�a para 22 membros, preenchendo as novas cadeiras com �juristas revolucion�rios�.
O fim da liberdade dos venezuelanos
Ao capturar os �rbitros, desequilibrou completamente o sistema de freios e contrapesos,�tornando o Judici�rio submisso ao Executivo.�Entre 2004 e 2013, em mais de 45 mil decis�es judiciais,�nem sequer uma �nica senten�a foi contr�ria ao governo.
Em 2004, o poderio chavista foi endossado com o apoio popular, e nas elei��es regionais o governo venceu em 20 das 22 prov�ncias. Mediante aos ataques �s liberdades civis e direitos individuais,�em 2005 a oposi��o decidiu boicotar as elei��es e todos os 167 assentos do parlamento foram dominados pelo governo.
Apesar disso, nas elei��es de 2006, marcadas pela reelei��o de Ch�vez com mais de 60% dos votos, e a derrota governista no referendo com proposta de reforma constitucional em 2007, mantiveram um aparente verniz democr�tico e de legalidade no pa�s.
A partir de 2006, todavia, o regime tornou-se mais repressivo. O governo iniciou os ataques a ve�culos de comunica��o cr�ticos ao governo. O propriet�rio da Globovisi�n, Guillermo Zuloaga, foi acusado de irregularidades financeiras e obrigado a fugir do pa�s para n�o ser preso. Sob intensa press�o,�vendeu o ve�culo para um simpatizante do governo.
Algumas das m�dias, acuadas, praticaram a autocensura. A Venevisi�n, anteriormente considerada como pr�-oposi��o, mal cobriu a oposi��o durante a elei��o de 2006, dando ao presidente Ch�vez 84% do tempo de cobertura ��quase cinco vezes mais do que aos seus rivais��, e contribuindo para sua vit�ria. Posteriormente, a emissora decidiu interromper as coberturas pol�ticas, optando por programa��es de entretenimento.
Em 2009, o comandante criou a Mil�cia Nacional Bolivariana, cujo prop�sito � �defender a revolu��o bolivariana na Venezuela�. Atualmente � composta por at� 1,6 milh�es de integrantes, segundo o governo de Maduro.
O regime passou a prender ou exilar pol�ticos,�ju�zes�e figuras da m�dia oposicionistas a partir de acusa��es d�bias�e eliminou limites aos mandatos presidenciais: tudo para que Ch�vez pudesse permanecer indefinidamente no poder.
Nicol�s Maduro chega ao poder
Em 2012 a reelei��o de Ch�vez foi considerada relativamente livre, mas n�o justa.�O governo controlava grande parte da m�dia e utilizou sem pudor a vasta m�quina do governo em seu favor. Ap�s a morte devido a um c�ncer, seu herdeiro pol�tico Nicol�s Maduro foi eleito de forma bastante question�vel em 2013, com uma pequena margem de votos contra Henrique Capriles, 50,61%. A diferen�a foi de t�o somente 220 mil votos.
A popularidade do regime j� n�o era mais a mesma e�a oposi��o se organizou estrategicamente para evitar as comuns fraudes eleitorais do Chavismo�nas elei��es seguintes. N�o obstante alguns locais de vota��o fossem dominados por gangues de civis armados simpatizantes ao chavismo e intimidassem eleitores,�as elei��es de 2015 foram vencidas pela oposi��o, que conquistou assentos suficientes para fazer mudan�as constitucionais.�Para driblar o parlamento, contudo,�Maduro ignorou todas as leis aprovadas pelo legislativo e passou a governar por decretos.
Dessa forma, o governo negligenciou o calend�rio eleitoral. Destarte, as elei��es de governadores, que deveriam ter ocorrido em 2016, bem como as elei��es municipais, marcadas para 2017, simplesmente n�o foram convocadas.
Em contrapartida ao caos econ�mico e humanit�rio, a oposi��o liderou intensos protestos populares em 2017.�Analistas pol�ticos afirmavam que Maduro estava � beira do precip�cio. Ele tinha�apenas 10,9% de popularidade e com 8 em cada 10 venezuelanos pedindo por sua ren�ncia.
Todavia, a resposta do governo foi a convoca��o de uma Assembleia Constituinte, objeto de ainda mais protestos. A pol�cia chavista assassinou manifestantes, mesmo em movimenta��es pac�ficas, o que desencadeou novos protestos � desta vez violentos, e com muitos confrontos. Na circunst�ncia, destacou-se a figura de �scar Perez, expoente da desobedi�ncia civil. Foi assassinado juntamente com seu grupo, em janeiro de 2018, apesar de ter anunciado o desejo de entregar-se ao governo.
Estrutura-se uma autocracia
Mesmo em meio �s mais intensas manifesta��es,�Maduro cantou e dan�ou em discursos.�Acabou com qualquer remota forma de negocia��o com a oposi��o. Inicialmente porque, para convocar uma nova constituinte, segundo as pr�prias regras da Constitui��o de 1999, seria necess�rio um referendo popular. A exig�ncia, por�m, foi negligenciada pelo governo � que temia perder a vota��o.
Al�m disso, membros bi�nicos foram designados de forma indireta pelo governo para compor um ter�o das 545 cadeiras da Assembleia. Envolveram-se integrantes de entidades sociais, organiza��es militares e sindicais, comit�s de abastecimento popular, miss�es de assist�ncia social. Todas organiza��es controladas pelo chavismo.
Ou seja, tratava-se de uma elei��o simulada�e todos sabiam disso. Ademais, para garantir a vit�ria do governo, foram criadas regras para favorecer o chavismo. Como o regime � mais forte no interior, fora definido que uma cidade como�Isla Rat�n, que possui apenas 3 mil habitantes, elegeria 1 representante, da mesma forma que Caracas, com uma popula��o mil vezes superior. Diante disso, a oposi��o boicotou a vota��o.
Apenas em 2017, a partir da usurpa��o do poder do Congresso e da apropria��o das compet�ncias da Assembleia Nacional pela Suprema Corte, a Venezuela passou a ser amplamente reconhecida como uma autocracia, como atestam Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. O governo tamb�m passou a se relacionar com a Constituinte unipartid�ria como sendo este o �rg�o legislativo da na��o.
A manuten��o da ditadura na Venezuela
J� a reelei��o de Nicol�s Maduro, em maio de 2018, foi marcada pelas costumeiras den�ncias de fraudes, alta absten��o e pelo�boicote�da oposi��o. Afinal, os tr�s principais advers�rios de Maduro foram impedidos de concorrer. Enquanto Leopoldo Lopez estava em pris�o domiciliar, Henrique Capriles teve seus direitos pol�ticos cassados por 15 anos, e Antonio Ledezma est� refugiado em Madrid.
Nesse contexto, a reelei��o de Maduro � contestada internacionalmente pela maioria dos pa�ses da Am�rica Latina, da Uni�o Europeia e pelos Estados Unidos. O Grupo de Lima, composto por 14 pa�ses, divulgou uma declara��o de n�o reconhecimento do governo venezuelano. Por sua vez, a Organiza��o dos Estados Americanos (OEA) � em que participam 34 na��es � tamb�m cobrou novas elei��es presidenciais. Bem como, o restabelecimento da democracia no pa�s.
Por fim, a cerim�nia de posse do novo mandato de Maduro foi realizada no Supremo Tribunal de Justi�a, j� que o parlamento possuia maioria de oposi��o. Em um evento completamente vazio, refletindo o isolamento internacional da Venezuela, os principais nomes que estiveram presentes para prestigiar o regime foram os autocratas Miguel D�az-Canel, de Cuba, e o nicaraguense Daniel Ortega.
Considera��es finais
A corrup��o das institui��es venezuelanas e a escalada para o autoritarismo foram parte de um processo gradual e lento. N�o � toa, 51% dos venezuelanos que participaram de uma pesquisa de 2011 do Latinobar�metro acreditavam estar em um pa�s �completamente democr�tico�, com score de satisfa��o superior a 80.�Os alarmes da sociedade n�o foram despertados, e os cr�ticos eram considerados como exagerados ou falsos alarmistas.
Em suma, o caso da Venezuela � um �timo exemplo de como a eros�o das institui��es pode ser impercept�vel para a maioria. E de como John Philpot Curran estava correto ao afirmar que o pre�o da liberdade � a eterna vigil�ncia.